Pagina: ‘Caminho de Letras’
Convite – Lya Luft
Não sou a areia onde se desenha um par de asas
ou grades diante de uma janela.
Não sou apenas a pedra que rola
nas marés do mundo,
em cada praia renascendo outra.
Sou a orelha encostada na concha
da vida, sou construção e desmoronamento,
servo e senhor, e sou
mistério
A quatro mãos escrevemos este roteiro
para o palco de meu tempo:
o meu destino e eu.
Nem sempre estamos afinados,
nem sempre nos levamos a sério.
Lya Luft é uma escritora brasileira contemporânea.
Poesia – Cecília Meirelles
“No mistério do Sem-Fim,
equilibra-se um planeta.
E, no planeta, um jardim,
e, no jardim, um canteiro:
no canteiro, uma violeta,
e, sobre ela, o dia inteiro,
entre o planeta e o Sem-Fim,
a asa de uma borboleta.”
A Duração
William Carlos Williams
(Tradução de José Paulo Paes)
Uma folha amarfanhada
de papel pardo mais
ou menos do tamanho
e volume aparente
de um homem ia
devagar rua abaixo
arrastada aos trancos
e barrancos pelo
vento quando
veio um carro e lhe
passou por cima
deixando-a aplastada
no chão. Mas diferente
de um homem ela se ergueu
de novo e lá se foi
com o vento aos trancos
e barrancos para ser
o mesmo que era antes.
William Carlos Williams (1883-1963), poeta norte-americano.
Espelho – Mário Quintana
“E nunca me perguntes o assunto de um poema: um poema sempre fala de outra coisa.”
(Mário Quintana)
Por acaso, surpreendo-me no espelho: quem é esse
Que me olha e é tão mais velho do que eu?
Porém, seu rosto… é cada vez menos estranho…
Meu Deus, meu Deus… Parece
Meu velho pai – que já morreu!
Como pude ficarmos assim?
Nosso olhar – duro – interroga:
“o que fizeste de mim?!”
Eu, Pai?! Tu é que me invadiste ,
Lentamente, ruga a ruga… Que importa? Eu sou, ainda,
Aquele mesmo menino teimoso de sempre
E os teus planos enfim lá se foram por terra
Mas sei que vi, um dia – a longa, a inútil guerra!
Vi sorrir, nesses cansados olhos, um orgulho triste…
Mário Quintana, poeta brasileiro.
Quero Silêncio
Anna Verônica Mautner
“O que aconteceria se, de repente, o silêncio caísse sobre nós?”
Silêncio. Silêncio, por favor. Psiu. Gritamos e colocamos janelas à prova de som, paredes almofadadas, tapetes, forros etc. O barulho de construção, de serra elétrica, de motores de carro, de buzinas – é o preço da modernidade, mas não é sobre isso que eu quero falar, e sim sobre o barulho humano de crianças e jovens. Quero falar dos sons das gentes.
Há anos, fala-se sobre a dificuldade de conciliar modernidade com ausência de silêncio e falta de espaço. Amplo espaço silencioso virou artigo de luxo. Contudo, tenho que confessar que somos nós, adultos, que liberamos e orquestramos esse inferno em que o barulho humano transformou o nosso mundo. Assentimos que ruídos ensurdecedores feitos por crianças, jovens e jovens adultos dominem.
Existem certos recintos que não conseguimos evitar, e, assim, ninguém consegue um encontro consigo mesmo, que sem silêncio é impossível. Nada contra a alegria e tudo contra o som pelo som, só para fazer companhia e evitar esse encontro. Musiquinha de fundo invade o planeta. Ficamos sem refúgio. Solidão e silêncio viraram palavrão?
Creiam-me, mesmo em hotéis grandões, é difícil encontrar lugar onde a criança entra sem fazer barulho. Só no bar, onde o escurinho à meia-luz é sinal, aliás o único respeitado pelas crianças. Em todos os lugares, seja ônibus, avião, lanchonete, cantina, somos envolvidos por gritos e por música, jamais por sussurros.
Como é que as crianças, as mesmas que gritam e galopam pelos corredores, conseguem manter-se em silêncio na missa, no culto, em enterros e em velórios? Como é que respeitam também o cinema?
Pode parecer até que sou contra criança, mas não sou, não, pois acho que somos nós, os adultos, por temer o silêncio, que instigamos ou deixamos o barulho vingar em volta de nós.
Quando vem uma ordem de silêncio pra valer, elas se calam e param de correr. Vivemos um momento e em um universo em que a aversão ao silêncio não se manifesta só com música de fundo, com escapamento desregulado, com os motoqueiros, mas ainda nos damos ao luxo de liberar qualquer barulhento em qualquer lugar.
O que aconteceria se, de repente, o silêncio caísse sobre nós? Respondo: discursos interiores, voz da “consciência”, emergiriam. Talvez sejamos todos culpados por maus pensamentos e/ou intenções, o que nos leva a viver em permanente esquiva de nós mesmos.
Com a barulheira que nos rodeia, tornamo-nos surdos a nós mesmos. Parece que o lema atual é: evitar o silêncio é o dever de todos. Deseduquem-se os outros. Silêncio é necessário para que se possa manter os homens como seres pensantes, criativos, dotados de memória e livres do excesso de estresse.
Não quero que o silêncio só exista na calada da noite, no alto das montanhas, no ermo das matas. Quero-o no contato com as pessoas queridas, ricas e coloridas -meus semelhantes. Não quero ser misantropa, quero ruído normal que me permita falar, sentir e pensar.
Anna Verônica Mautner, é psicanalista e autora do livro “Cotidiano nas Entrelinhas” (Editora Ágora).
O tempo passou e me formei em solidão
José Antônio Oliveira de Resende
“Tenho saudade do que já foi, as velhas cozinhas de Minas, com seus fogões de lenha, cascas de laranja secas, penduradas, para acender o fogo, bule de café sobre a chapa, lenha crepitando no fogo, o cheiro bom da fumaça, rostos vermelhos. Minha alma tem saudades dessas cozinhas antigas…”
(Rubem Alves)
Sou do tempo em que ainda se faziam visitas. Lembro-me de minha mãe mandando a gente caprichar no banho porque a família toda iria visitar algum conhecido. Íamos todos juntos, família grande, todo mundo a pé. Geralmente, à noite.
Ninguém avisava nada, o costume era chegar de paraquedas mesmo. E os donos da casa recebiam alegres a visita. Aos poucos, os moradores iam se apresentando, um por um.
– Olha o compadre aqui, garoto! Cumprimenta a comadre.
E o garoto apertava a mão do meu pai, da minha mãe, a minha mão e a mão dos meus irmãos. Aí chegava outro menino. Repetia-se toda a diplomacia.
– Mas vamos nos assentar, gente. Que surpresa agradável!
A conversa rolava solta na sala. Meu pai conversando com o compadre e minha mãe de papo com a comadre. Eu e meus irmãos ficávamos assentados todos num mesmo sofá, entreolhando– nos e olhando a casa do tal compadre. Retratos na parede, duas imagens de santos numa cantoneira, flores na mesinha de centro… casa singela e acolhedora. A nossa também era assim.
Também eram assim as visitas, singelas e acolhedoras. Tão acolhedoras que era também costume servir um bom café aos visitantes. Como um anjo benfazejo, surgia alguém lá da cozinha – geralmente uma das filhas – e dizia:
– Gente, vem aqui pra dentro que o café está na mesa.
Tratava-se de uma metonímia gastronômica. O café era apenas uma parte: pães, bolo, broas, queijo fresco, manteiga, biscoitos, leite… tudo sobre a mesa. Juntava todo mundo e as piadas pipocavam. As gargalhadas também. Pra que televisão? Pra que rua? Pra que droga? A vida estava ali, no riso, no café, na conversa, no abraço, na esperança… Era a vida respingando eternidade nos momentos que acabam…. era a vida transbordando simplicidade, alegria e amizade…
Quando saíamos, os donos da casa ficavam à porta até que virássemos a esquina. Ainda nos acenávamos. E voltávamos para casa, caminhada muitas vezes longa, sem carro, mas com o coração aquecido pela ternura e pela acolhida. Era assim também lá em casa. Recebíamos as visitas com o coração em festa.. A mesma alegria se repetia. Quando iam embora, também ficávamos, a família toda, à porta. Olhávamos, olhávamos… até que sumissem no horizonte da noite.
O tempo passou e me formei em solidão. Tive bons professores: televisão, vídeo, DVD, e-mail… Cada um na sua e ninguém na de ninguém. Não se recebe mais em casa. Agora a gente combina encontros com os amigos fora de casa:
– Vamos marcar uma saída!… – ninguém quer entrar mais.
Assim, as casas vão se transformando em túmulos sem epitáfios, que escondem mortos anônimos e possibilidades enterradas. Cemitério urbano, onde perambulam zumbis e fantasmas mais assustados que assustadores.
Casas trancadas.. Pra que abrir? O ladrão pode entrar e roubar a lembrança do café, dos pães, do bolo, das broas, do queijo fresco, da manteiga, dos biscoitos do leite…
Que saudade do compadre e da comadre!
José Antônio Oliveira de Resende é professor do Departamento de Letras, Artes e Cultura, da Universidade Federal de São João del-Rei/MG
O meu ponto de vista sem censura: a exigência de corpos femininos não saudáveis
“A minha esperança sincera é de que, por meio dos nossos esforços, as jovens modelos um dia serão poupadas da humilhação, da perigosa perda de peso, da depressão que vem com a anorexia e da miséria do abandono de uma indústria envergonhada de vê-las transformadas em mulheres de verdade.”
(Coco Rocha, modelo canadense)
Não é de hoje que existe polêmica em torno das exigências feitas por estilistas e agências de modelo que incentivam jovens a terem corpos a baixo dos índices de gordura ideais para sua altura. A pressão para que mantenham um corpo com características da adolescência a que são submetidas essas mulheres favorece o surgimento de transtornos alimentares e de humor, como a anorexia ou a depressão. Como se não bastasse, essa influência se alastra por meio da mídia que prega a todas as consumidoras de moda que estes seriam os corpos ideais para as mulheres.
Coco Rocha, modelo canadense de 21 anos, publicou na última semana, em seu blog, um texto que critica os produtores de moda que humilham e desrespeitam as modelos, exigindo de mulheres adultas corpos que se assemelham aos de adolescentes. O texto foi originalmente publicado em inglês e cedido pela Elite Model ao site UOL Moda, responsável pela tradução para o português.
Abaixo, segue o texto na íntegra:
“Tem havido uma certa comoção em relação aos artigos que saíram sobre mim no “New York Times” e no “New York Daily News”. Como apenas algumas declarações minhas foram publicadas, acho necessário que eu expresse o meu ponto de vista corretamente, sem edições externas.
Sou uma modelo de 21 anos, 15 cm mais alta e dez manequins menor do que a mulher comum americana. Mesmo assim, em algum universo paralelo, sou considerada “gorda”… Este foi o tema de uma grande discussão esta semana e a notícia que saiu por aí foi: “Coco Rocha é muito gorda para as passarelas”.
Seria este o caso? Não. Ainda trabalho e sou requisitada como modelo. Na realidade, eu me vejo mais ocupada do que nunca. Nos últimos anos, eu não ganhei uma grande quantidade de peso, apenas dois centímetros aqui e ali, como aconteceria com qualquer mulher que sai da adolescência.
Mas este assunto do peso das modelos é, e sempre foi, uma preocupação minha. Há algumas decisões morais que parecem muito simples para nós. Por exemplo, não explorar o trabalho infantil e não aumentar o fator de dependência nos cigarros. Quando estilistas, stylists ou agentes forçam crianças a tomarem medidas que levam à anorexia ou a outro problema de saúde para que continuem na profissão, eles estão pedindo para que o público ignore a sua consciência moral a favor da arte.
Claramente, todos nós vemos quão moralmente errado é um adulto convencer uma menina de 15 anos já magra de que ela, na verdade, está gorda demais. É indesculpável que um adulto exija que uma menina perca, de maneira não natural, um peso vital para que seu corpo continue funcionando corretamente. Como pode qualquer pessoa justificar uma estética que reduz uma mulher ou criança a uma magreza esquelética? Isso é arte? É claro que a estética da moda deve embelezar a forma humana, não destruí-la.
Há divergências na indústria a respeito disso. Apesar de haver aqueles que não levam em consideração o bem-estar da modelo, eu tive a honra e o privilégio de trabalhar com alguns dos melhores estilistas, editores, stylists, fotógrafos e agentes, que respeitam da mesma maneira tanto as modelos novas quanto as consagradas. Sei que há muitos outros por aí, com quem eu não trabalhei, que também concordam comigo neste assunto.
O CFDA (Conselho dos Estilistas da América) tem tentando ao máximo corrigir esta questão. Alguns dias atrás, em sua reunião anual, viram todos que estavam na sala em acordo a favor da mudança do “sample size” [o tamanho das peças dos desfiles e mostruários] e da contratação de modelos apenas acima dos 16 anos. É ótimo ver quantos corações estão no lugar certo, porque nós temos de fazer estas mudanças para a próxima geração de meninas.
Como uma mulher adulta, eu posso tomar decisões por mim mesma. Posso decidir que não vou permitir que eu seja degradada em um casting – marchar de calcinha e sutiã com um grupo de jovens garotas, ser apalpada, espetada e cutucada como gado. Eu consegui escapar desse tratamento, porque já tenho uma carreira consolidada como modelo e sou adulta… mas e as meninas novas e aspirantes a modelo?
Nós precisamos de mudanças. Eu ia preferir que não houvesse meninas trabalhando com menos de 16 anos, mas, se este for o caso, adoraria ver as adolescentes sendo acompanhadas por seu tutor aos castings, desfiles e sessões de fotos. O CFDA criou um código para seus membros, e eu adoraria ver toda a indústria seguindo-o. A sociedade legisla um monte de coisas – a proibição do uso de esteróides nos esportes é um exemplo –, é apenas lógico que haja regras de conduta para manter a indústria da moda saudável.
No passado, modelos se pronunciaram sobre o assunto, e foram acusadas de apenas falar algo porque suas carreiras estavam à beira da extinção. Este não é o meu caso. Falei sobre isso pela primeira vez há uns dois anos, no auge do que uma modelo consideraria a carreira ideal, e de fato houve uma reação – aqueles que mais desrespeitavam o assunto, de repente, chamaram-me para trabalhar para eles! Isso foi uma tática de relações públicas e eu não estava pronta para cair nela. Disse: “Não, vamos ver daqui algumas temporadas. Se mudarem, aí trabalharei com vocês”. Eles não mudaram. Eu não trabalhei para eles.
Da minha geração de modelos, estou exatamente onde preciso estar na minha carreira e agradeço por poder usar a minha posição para me expressar ativamente contra isso, com o apoio do CFDA e da “Vogue”. A minha esperança sincera é de que, por meio dos nossos esforços, as jovens modelos um dia serão poupadas da humilhação, da perigosa perda de peso, da depressão que vem com a anorexia e da miséria do abandono de uma indústria envergonhada de vê-las transformadas em mulheres de verdade.
Há os padrões normais em como tratamos uns aos outros e como tratamos crianças. Há aqueles que continuam a atropelar estes valores, mas há também os defensores de um caminho melhor. Espero que os esforços contínuos do CFDA e de todos que respeitam estes valores irão influenciar a opinião dos que estão no lado contrário da indústria, para assegurar uma mudança verdadeira para o melhor.”
Peixe fresco (Autor Desconhecido)
“A adversidade desperta em nós capacidades que,
em circunstâncias favoráveis, teriam ficado adormecidas.”
(Horácio)
Como todos sabem, a culinária japonesa tem como ingrediente de muitos de seus pratos o peixe. Como em muitos destes pratos o peixe é servido cru, é necessário que sejam preparados com peixes frescos. No entanto, as águas próximas ao Japão há décadas que não produzem muitos peixes.
Sendo assim, para alimentar a sua população os japoneses aumentaram o tamanho dos navios pesqueiros e começaram a pescar mais longe do que nunca. Quanto mais longe os pescadores iam, mais tempo levava para o peixe chegar. Se a viagem de volta levasse mais do que alguns dias, o peixe já não era mais fresco e portanto não mais ideal para o preparo dos pratos, além de ter seu sabor alterado.
Para resolver este problema, as empresas de pesca instalaram congeladores em seus barcos. Eles pescavam e congelavam os peixes em alto-mar. Os congeladores permitiram que os pesqueiros fossem mais longe e ficassem em alto mar por muito mais tempo.
Os japoneses conseguiram notar a diferença entre peixe fresco e peixe congelado e, obviamente, não gostaram do peixe congelado. Então, as empresas de pesca instalaram tanques de peixe nos navios pesqueiros. Eles podiam pescar e depositar esses peixes nos tanques, mantendo-os vivos. Contudo, depois de certo tempo, pela falta de espaço, os peixes paravam de se debater e não se moviam mais. Eles chegavam vivos, porém cansados e abatidos. Infelizmente, os japoneses ainda podiam notar a diferença do sabor. Por não se mexerem por dias, os peixes perdiam o gosto característico do frescor.
Mas os japoneses, vendo o consumo de peixes cair, resolveram este problema. Como eles conseguiram trazer ao Japão peixes com gosto de puro frescor?
Para conservar o gosto de peixe fresco, as empresas de pesca japonesas passaram a colocar um pequeno tubarão em cada tanque. O tubarão comia alguns peixes, mas a maioria dos peixes chegava viva e fresca no desembarque, porque os peixes eram desafiados a movimentarem-se dentro dos tanques.
Que paralelo podemos fazer entre a nossa vida e a histórias dos peixes?
Quando as pessoas atingem seus objetivos tais como: quando encontram uma parceiro maravilhoso, quando alcançam sucesso profissional, quando pagam todas as suas dívidas, ou o que quer que seja, elas podem perder as suas paixões e isto pode deixá-las apáticas e sem vida. Contudo, se seus desafios estão de um tamanho correto e elas conseguem, passo a passo, conquistar esses desafios, isso produz felicidade e excitação, as provoca a tentar novas soluções. Elas se divertem. Elas ficam vivas!
Portanto, ao invés de evitar desafios, mergulhe dentro deles. Curta o jogo. Se seus desafios são muito grandes e numerosos, não desista, se reorganize! Busque mais determinação, mais conhecimento e mais ajuda. Se você alcançou seus objetivos, coloque objetivos maiores. Uma vez que suas necessidades pessoais ou familiares forem atingidas, vá ao encontro dos objetivos do seu grupo, da sociedade e da humanidade. Você tem recursos, habilidades e destrezas para fazer a diferença.
Ponha um tubarão no seu tanque…
Duas Línguas (Amadeu Ferreira*)
O poema abaixo, escrito pelo índio guarani Amadeu Ferreira, fala sobre a experiência de viver entre duas línguas e duas culturas, com valores e costumes diferentes, e muitas vezes, opostos. No entanto, mesmo aqueles que não passaram pela experiência de serem criados entre duas culturas ou no bilinguismo, podem identificar-se com o autor, pois é muito comum que vivenciemos experiências conflituosas ainda que dentro de um único universo cultural. Leia trechos do poema e verifique se já vivenciou situações em que tinha que se expressar por meio de “duas línguas”:
Vivi muitos anos com a língua entortada,
porque fui obrigado a falar palavras estranhas de uma outra língua.
Queriam que eu falasse uma língua que eu não falava,
que eu dissesse o que não dizia, que eu calasse o que sabia.
Por isso, durante muito tempo fiquei emudecido.
A língua presa, travada, reprimida.
A palavra entalada na garganta, o não-dito.
Tentaram tirar de mim aquilo que havia guardado como um tesouro:
a palavra, que é o arco da memória.
Diziam que me faltava inteligência,
porque antes de gaguejar as palavras certas
eu tinha de pensar, duas vezes, numa língua estranha.
O tempo passou. Agora, tenho duas línguas.
(…)
Agora já não posso mais viver sem as duas.
Estou sempre trocando de língua com um pouco de medo,
como se fosse um caso de bigamia.
Uma língua sabe coisas que a outra desconhece,
acham graça uma da outra, fazem gozação e às vezes se zangam.
afora isso, elas se dão tão bem, que sonho nas duas ao mesmo tempo.
Serestando (Ana Cristina Colla)
“Seria ótimo se houvesse como dizer um “não-sim” porque, muitas vezes, o “não” traz impresso o desejo do “sim”.”
Na vida mentimos a todo momento – se a afirmação no plural causa rejeição, recoloco os termos: na vida minto a todo momento. Talvez a utilização da palavra todo também possa ser assumida como um exagero para valorizar a argumentação que virá. Acostumamo-nos tanto a mentir sobre as pequenas coisas que elas acabam por se tornar verdades no decorrer do tempo. Dá preguiça não mentir. È tão mais prático. “Como vai? Tudo bem?” e a resposta vem automática: “tudo bem” – mesmo se você acordou naquele dia com a sensção de que nada faz sentido na vida.
A palavra nos permite isso. Escondemo-nos por trás de seus significados. No máximo, somos denunciados pelo tom impresso na voz, sinalizando que razão e sentimento andam brigados. A comunicação por palavras, muitas vezes, leva a uma redução prática do sentir.
Palavras não me bastam, são concretas demais. “Sim”, “não”, “sempre”, “nunca”, ainda bem que existe “às vezes”, “nem sempre”, para amenizar e deixar em aberto. Seria ótimo se houvesse como dizer um “não-sim” porque, muitas vezes, o “não” traz impresso o desejo do “sim”. Desejar não desejando. Ou eu é que estou ficando esquizofrênica?
Se ampliamos a comunicação para todo o corpo, o invisível pode ser comunicado. Com a associação ou não das palavras. Não nego a palavra. Apenas creio que ela não se batsa por si. Sinto-a traiçoeira.
Ana Cristina Colla é atriz-pesquisadora do LUME Teatro.
OBS: O texto na íntegra pode ser encontrando em Serestando. In: FERRACINI, Renato (org.). Corpos em fuga, corpos em arte. São Paulo: Aderaldo & Rotschild Editores: Fapesp, 2006.