Duas Línguas (Amadeu Ferreira*)

O poema abaixo, escrito pelo índio guarani Amadeu Ferreira, fala sobre a experiência de viver entre duas línguas e duas culturas, com valores e costumes diferentes, e muitas vezes, opostos. No entanto, mesmo aqueles que não passaram pela experiência de serem criados entre duas culturas ou no bilinguismo, podem identificar-se com o autor, pois é muito comum que vivenciemos experiências conflituosas ainda que dentro de um único universo cultural. Leia trechos do poema e verifique se já vivenciou situações em que tinha que se expressar por meio de “duas línguas”:

 

Vivi muitos anos com a língua entortada,
porque fui obrigado a falar palavras estranhas de uma outra língua.
Queriam que eu falasse uma língua que eu não falava,
que eu dissesse o que não dizia, que eu calasse o que sabia.

Por isso, durante muito tempo fiquei emudecido.
A língua presa, travada, reprimida.duas linguas
A palavra entalada na garganta, o não-dito.

Tentaram tirar de mim aquilo que havia guardado como um tesouro:
a palavra, que é o arco da memória.
Diziam que me faltava inteligência,
porque antes de gaguejar as palavras certas
eu tinha de pensar, duas vezes, numa língua estranha.

O tempo passou. Agora, tenho duas línguas.

(…)

Agora já não posso mais viver sem as duas.
Estou sempre trocando de língua com um pouco de medo,
como se fosse um caso de bigamia.

Uma língua sabe coisas que a outra desconhece,
acham graça uma da outra, fazem gozação e às vezes se zangam.
afora isso, elas se dão tão bem, que sonho nas duas ao mesmo tempo.

Às vezes, a palavra de uma soa engraçado na outra.
Às vezes, quero falar uma e me sai a outra.
Às vezes, quando me perguntam numa, respondo na outra.
Às vezes fico com uma delas tão engasgada que se permaneço calado
tenho a impressão de que vou explodir.

Algumas vezes elas se enredam e se entrelaçam uma na outra
e depois disputam uma corrida para ver quem chega primeiro,
e muitas vezes permanecem misturadas uma na outra
que me dá até vontade de rir.

Há dias em que as palavras não ditas me pesam tanto,
que eu libero todas elas, deixando-as voar como música,
com medo que fiquem enferrujadas as cordas que as sabem tocar.
Há dias em que quero traduzir uma para a outra,
mas as palavras se escondem de mim, fogem para bem longe
e gasto muito tempo correndo atrás delas.
Entre elas, dividem o meu mundo
e quando atravessam a fronteira se sentem meio perdidas
e não se cansam de roubar palavras uma da outra.
Ambas pensam,
mas há partes do coração em que uma delas não consegue entrar
e quando se aproxima da porta, o sangue se põe a jorrar com as palavras

Cada uma foi professora da outra:
o guarani nasceu primeiro e eu me habituei a dormir
embalado por sua suave sonoridade musical.
O guarani não tinha a letra, é verdade, mas era o dono da palavra falada.
Ensinou ao português os segredos da oralidade, guiando-lhe a voz.
Já o português, nascido na ponta dos meus dedos,
ensinou o guarani a escrever, porque este nunca havia freqüentado a escola.
Tenho duas línguas comigo
duas línguas que me fizeram
e já não vivo sem elas, nem sou eu, sem as duas.

O poema acima pode ser encontrado, na íntegra, no site do Museu da Pessoa,
ponto de cultura que valoriza a história oral e reúne memórias de pessoas de todo o país.
 

* O poema de Amadeu Ferreira foi trabalhado por professores guaranis, resultando na versão final.

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