Pagina: ‘Caminho de Letras’
A Floresta – Khalil Gibran
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Na floresta não existe nem rebanho nem pastor
Quando o inverno caminha
Segue seu distinto curso como faz a primavera
Os homens nasceram escravos daquele que repudia a submissão
Se ele um dia se levanta e lhes indica o caminho
Com ele caminharão
Dá-me a flauta e canta
O canto é o pasto das mentes
E o lamento da flauta perdura mais que rebanho e pastor.
Na floresta não existe ignorante ou sábio.
Quando os ramos se agitam a ninguém reverenciam
O saber humano é ilusório
como a serração dos campos que se vai quando o sol se levanta no horizonte.
Dá-me a flauta e canta
O canto é o melhor saber
E o lamento da flauta sobrevive ao contilar das estrelas.
Na floresta só existe lembrança dos amorosos.
Os que dominaram o mundo e oprimiram e conquistaram
os seus nomes são como letras dos nomes dos criminosos.
Conquistador entre nós é aquele que sabe amar.
Dá-me a flauta e canta
E esquece a injustiça do opressor.
Pois o lírio é uma taça para o orvalho
E não para o sangue.
Na floresta não há crítico nem censor
Se as gazelas se perturbam quando avistam o companheiro
a águia não diz: que estranho.
Sábio entre nós é aquele que julga estranho apenas o que é estranho.
Ah, dá-me a flauta e canta
O canto é a melhor loucura
e o lamento da flauta sobrevive aos ponderados e aos racionais.
Na floresta não existem homens livres ou escravos.
Todas as glórias são vãs como borbulhas na água.
Quando a amendoeira lança suas flores sobre o espinheiro não diz:
“Ele é desprezível e eu sou um grande Senhor.”
Dá-me a flauta e canta
que o canto é glória autentica
E o lamento da flauta sobrevive
Ao nobre e ao vil.
Na floresta não existe fortaleza ou fragilidade
Quando o leão ruge não dizem:“Ele é temível.”
A vontade humana é apenas
uma sombra que vagueia no espaço do pensamento
e o direito dos homens fenece
como folhas de outono.
Dá-me a flauta e canta
O canto é a força do espírito
E o lamento da flauta sobrevive ao apagamento dos sóis.
Na floresta não há morte nem apuros.
A alegria não morre quando se vai a primavera.
O pavor da morte é uma quimera que se insinua no coração,
pois quem vive uma primavera é como se houvesse vivido séculos.
Dá-me a flauta e canta
O canto é o segredo da vida eterna
E o lamento da flauta permanecerá após findar-se a existência.
Kalil Gibran
A bela e o dragão – Mário Quintana
“As coisas que não têm nome assustam,
escravizam-nos, devoram-nos…”
As coisas que não têm nome assustam, escravizam-nos, devoram-nos…
Se a bela faz de ti gato e sapato, chama-lhe, por exemplo, A BELA DESDENHOSA. E ei-la rotulada, classificada, exorcizada, simples marionete agora, com todos os gestos perfeitamente previsíveis, dentro do seu papel de boneca de pau. E no dia em que chamares a um dragão de JOLI, o dragão te seguirá por toda parte como um cachorrinho…
Este pequeno texto, retirado do livro Sapato Florido, de Mário Quintana, foi publicado em 1948 e fala do poder da nomeação daquilo que sentimos ou fantasiamos e, principalmente, dos temores que nos rodeiam e paralisam. Dar nome é dar significado, é colocar no campo do conhecido e poder definir quais os próximos passos e estratégias para lidar com as belas desdenhosas que insistem em nos fazer “de gato e sapato” e com os dragões que nos assombram desde pequenininhos. Conselho simples, de um poeta que sempre prezou pela simplicidade.
O homem mais sábio – José Saramago
“Talvez repetisse as histórias para si próprio,
quer fosse para não as esquecer,
quer fosse para as enriquecer com peripécias novas.”
O discurso abaixo foi composto e proferido por José Saramago (1922-2010), em 1998, na Academia de Letras Sueca, durante a cerimônia de entrega do Prêmio Nobel de Literatura ao autor. Saramago é português e foi o único autor de língua portuguesa a receber esta premiação. Ele faleceu no último mês, em uma ilha espanhola, chamada Lanzarote.
“O homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever. As quatro da madrugada, quando a promessa de um novo dia ainda vinha em terras de França, levantava-se da enxerga e saía para o campo, levando ao pasto a meia dúzia de porcas de cuja fertilidade se alimentavam ele e a mulher. Viviam desta escassez os meus avós maternos, da pequena criação de porcos que, depois do desmame, eram vendidos aos vizinhos da aldeia. Azinhaga de seu nome, na província do Ribatejo.
Chamavam-se Jerónimo Melrinho e Josefa Caixinha esses avós, e eram analfabetos um e outro. No Inverno, quando o frio da noite apertava ao ponto de a água dos cântaros gelar dentro da casa, iam buscar às pocilgas os bácoros mais débeis e levavam-nos para a sua cama. Debaixo das mantas grosseiras, o calor dos humanos livrava os animaizinhos do enregelamento e salvava-os de uma morte certa. Ainda que fossem gente de bom caráter, não era por primores de alma compassiva que os dois velhos assim procediam: o que os preocupava, sem sentimentalismos nem retóricas, era proteger o seu ganha-pão, com a naturalidade de quem, para manter a vida, não aprendeu a pensar mais do que o indispensável.
Ajudei muitas vezes este meu avô Jerónimo nas suas andanças de pastor, cavei muitas vezes a terra do quintal anexo à casa e cortei lenha para o lume, muitas vezes, dando voltas e voltas à grande roda de ferro que acionava a bomba, fiz subir a água do poço comunitário e a transportei ao ombro, muitas vezes, às escondidas dos guardas das searas, fui com a minha avó, também pela madrugada, munidos de ancinho, panal e corda, a recolher nos restolhos a palha solta que depois haveria de servir para a cama do gado. E algumas vezes, em noites quentes de Verão, depois da ceia, meu avô me disse: “José, hoje vamos dormir os dois debaixo da figueira”. Havia outras duas figueiras, mas aquela, certamente por ser a maior, por ser a mais antiga, por ser a de sempre, era, para toda as pessoas da casa, a figueira.
Mais ou menos por antonomásia, palavra erudita que só muitos anos depois viria a conhecer e a saber o que significava… No meio da paz noturna, entre os ramos altos da árvore, uma estrela aparecia-me, e depois, lentamente, escondia-se por trás de uma folha, e, olhando eu noutra direção, tal como um rio correndo em silêncio pelo céu côncavo, surgia a claridade opalescente da Via Láctea, o Caminho de Santiago, como ainda lhe chamávamos na aldeia.
Infância – Carlos Drummond de Andrade
Meu pai montava a cavalo, ia para o campo.
Minha mãe ficava sentada cosendo.
Meu irmão pequeno dormia.
Eu sozinho menino entre mangueiras
Lia a história de Robinson Crusoé.
Comprida história que não acabava mais.
No meio-dia branco de luz uma voz que aprendeu
a ninar nos longes da senzala – e nunca se esqueceu
chamava para o café
Café preto que nem a preta velha
café gostoso
café bom.
Minha mãe ficava sentada cosendo
olhando para mim:
– Psiu… Não acorde o menino.
Para o berço onde pousou um mosquito.
E dava um suspiro… que fundo!
Lá longe meu pai campeava
no mato sem fim da fazenda.
E eu não sabia que minha história
era mais bonita que a de Robson Crusoé.
Poema publicado em Antologia Poética (1960), do poeta modernista mineiro Carlos Drummond de Andrade.
35 anos para ser feliz – Martha Medeiros
A crônica abaixo foi escrita em 1998, pela publicitária e poetisa gaúcha Martha Medeiros, a partir de uma notícia que a autora leu no jornal. A matéria dizia que havia sido realizado em Madrid o I Congresso Internacional da Felicidade, e que uma das conclusões do encontro foi de que a felicidade só é alcalçada depois do 35 anos. Martha concorda e explica por quê. Vale talvez mais estar atento a como ela descreve o que torna alguém capaz de ser feliz, do que preocupar-se com a idade. Quem aos 35 ainda não alcançou a maturidade que a felicidade pede, tem ainda muito tempo para conquistá-la.
“(…) A maioria das pessoas, quando são questionadas sobre o assunto, dizem: “Não existe felicidade, existem apenas momentos felizes”. É o que eu pensava quando habitava a caverna dos 17 anos, para onde não voltaria nem puxada pelos cabelos. Era angústia, solidão, impasses e incertezas pra tudo quanto era lado, minimizados por um garden party de vez em quando, um campeonato de tênis, um feriadão em Garopaba. Os tais momentos felizes.
Adolescente é buzinado dia e noite: tem que estudar para o vestibular, aprender inglês, usar camisinha, dizer não às drogas, não beber quando dirigir, dar satisfação aos pais, ler livros que não quer e administrar dezenas de paixões fulminantes e rompimentos. Não tem grana para ter o próprio canto, costuma deprimir-se de segunda a sexta e só se diverte aos sábados, em locais onde sempre tem fila. É o apocalipse. Felicidade, onde está você? Aqui, na casa dos 30 e sua vizinhança.
Está certo que surgem umas ruguinhas, umas mechas brancas e a barriga salienta-se, mas é um preço justo para o que se ganha em troca. Pense bem: depois dos 30, você paga do próprio bolso o que come e o que veste. Vira-se no inglês, no francês, no italiano e no iídiche, e ai de quem rir do seu sotaque. Não tenta mais o suicídio quando um amor não dá certo, enjoou do cheiro da maconha, apaixonou-se por literatura, trocou sua mochila por uma Samsonite e não precisa da autorização de ninguém para assistir ao canal da Playboy. Talvez não tenha se tornado o bam-bam-bam que sonhou um dia, mas reconhece o rosto que vê no espelho, sabe de quem se trata e simpatiza com o cara.
Depois que cumprimos as missões impostas no berço — ter uma profissão, casar e procriar — passamos a ser livres, a escrever nossa própria história, a valorizar nossas qualidades e ter um certo carinho por nossos defeitos. Somos os titulares de nossas decisões. A juventude faz bem para a pele, mas nunca salvou ninguém de ser careta. A maturidade, sim, permite uma certa loucura. Depois dos 35, conforme descobriram os participantes daquele congresso curioso, estamos mais aptos a dizer que infelicidade não existe, o que existe são momentos infelizes. Sai bem mais em conta.”
Parábola do jardineiro – Rubem Alves
O texto a seguir, do escritor e eduador mineiro Rubem Alves é inspirado em uma parábola da tradição cristã, que conta que um senhor havia dado a seus servos diferentes quantidades de dinheiro para que administrassem partes de suas propriedades enquanto este viajava. Rubem Alves transforma este proprietário em um jardineiro e nos conta uma bela história sobre o medo de arriscar, de conviver com o imprevisível, com o instável. A quem tem medo de trabalhar com os jardins, que se transformam todo tempo, será mais agradável trabalhar com pedras, que permanecem estáticas?
“Havia um homem muito rico, possuidor de vastas propriedades, que era apaixonado por jardins. Os jardins ocupavam o seu pensamento o tempo todo e ele repetia sem cessar: “O mundo inteiro ainda deverá se transformar num jardim. O mundo inteiro deverá ser belo, perfumado e pacífico. O mundo inteiro ainda se transformará num lugar de felicidade.” Suas terras eram uma sucessão sem fim de jardins, jardins japoneses, ingleses, italianos, jardins de ervas, franceses. Era um trabalhão cuidar dos jardins. Mas valia a pena pela alegria. O verde das folhas, o colorido das flores, as variadas simetrias das plantas, os pássaros, as borboletas, os insetos, as fontes, as frutas, o perfume… Sozinho ele não daria conta. Por isso anunciou que precisava de jardineiros. Muitos se apresentaram e foram empregados.
Aconteceu que ele precisou fazer uma longa viagem. Iria a uma terra longínqua comprar mais terras para plantar mais jardins. Assim, chamou três dos jardineiros que contratara, Paulo, Hermógenes e Boanerges e lhes disse: “Vou viajar. Ficarei muito tempo longe. E quero vocês cuidem de três dos meus jardins. Os outros, já providenciei quem cuide deles. A você, Paulo, eu entrego o cuidado do jardim japonês. Cuide bem das cerejeiras, veja que as carpas estejam sempre bem alimentadas… A você, Hermógenes, entrego o cuidado do jardim inglês, com toda a sua exuberância de flores pelas rochas… E a você, Boanerges, entrego o cuidado do jardim mineiro, com romãs, hortelãs e jasmins.” Ditas essas palavras ele partiu.
O Paulo ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim japonês. O Hermógenes ficou muito feliz e pôs-se a cuidar do jardim inglês. Mas o Boanerges não era jardineiro. Mentira ao se oferecer para o emprego. Quando ele viu o jardim mineiro ele disse: “Cuidar de jardins não é comigo. É trabalho demais…” Trancou então o jardim com um cadeado e o abandonou. Passados muitos dias voltou o Senhor dos Jardins, ansioso por ver os seus jardins. O Paulo, feliz, mostrou-lhe o jardim japonês, que estava muito mais bonito do que quando o recebera. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu. Veio o Hermógenes e lhe mostrou o jardim inglês, exuberante de flores e cores. O Senhor dos Jardins ficou muito feliz e sorriu. Aí foi a vez do Boanerges. E não havia formas de enganar. “Ah! Senhor! Preciso confessar: não sou jardineiro. Os jardins me dão medo. Tenho medo das plantas, dos espinhos, das taturanas, das aranhas. Minhas mãos são delicadas. Não são próprias para mexer com a terra, essa coisa suja… Mas o que me assusta mesmo é o fato das plantas estarem sempre se transformando: crescem, florescem, perdem as folhas. Cuidar delas é uma trabalheira sem fim. Se estivesse no meu poder, todas as plantas e flores seriam de plástico. E a terra seria coberta com cimento, pedras e cerâmica, para evitar a sujeira. As pedras me dão tranquilidade. Elas não se mexem. Ficam onde são colocadas. Como é fácil lavá-las com esguicho e vassoura! Assim, eu não cuidei do jardim. Mas o tranquei com um cadeado, para que os traficantes e os vagabundos não o invadissem”.
E com estas palavras entregou ao Senhor dos Jardins a chave do cadeado. O Senhor dos Jardins ficou muito triste e disse: “Esse jardim está perdido. Deverá ser todo refeito. Paulo, Hermógenes: vocês vão ficar encarregados de cuidar desse jardim. Quem já tinha jardins ficará com mais jardins. E, quanto a você, Boanerges, respeito o seu desejo. Você não gosta de jardins. Vai ficar sem jardins. Você gosta de pedras. Pois, de hoje em diante, você irá quebrar pedras na minha pedreira…”
Um adeus a José Saramago
“Todos os dicionários juntos não contêm nem metade dos termos
de que precisaríamos para nos entendermos uns aos outros.”
José Saramago
Hoje pela manhã, Portugal perdeu um de seus maiores escritores contemporâneos: José Saramago. Em consequência de uma falência múltipla dos órgãos, Saramago faleceu aos 87 anos. Dentre seus livros, o mais conhecido é “Ensaio sobre a cegueira” (1995), que rendeu-lhe o Prêmio Nobel de Literatura em 1998 e recentemente foi adaptado para o cinema. Outra obra que obteve bastante expressão foi “O Evangelho segundo Jesus Cristo” (1991), que apresenta o texto biblíco descrito sobre ótica do próprio Jesus, retratado mais em sua faceta humana que divina. Conhecido pelo seu ateísmo, Saramago participou de polêmicos debates com a igreja católica ao lançar esta obra.
Todas as obras, no entanto, são carregadas de poesia e traduzem o olhar do autor sobre os valores da cultura ocidental e os dilemas de que os homens compartilham ao conviverem uns com os outros. A morte, que hoje chega ao autor, foi um tema abordado em diversas de suas obras. Em “As intermitências da morte” (2005), por exemplo, Saramago nos conta a história do dia em que a Morte resolveu “tirar férias” e determinar que a partir daquele dia, ninguém mais morreria. Ao criar estas situações absurdas, suas histórias nos levam a desnaturalizar aquilo que tomamos como óbvio, imediato e nos lançam perante reflexões como: e se ninguém mais morresse? E se todos fossem cegos?
Abaixo segue essa resposta de Saramago, que mais do que sua opinião sobre a eternidade, pergunta que o entrevistador lhe fizera, traz também uma visão do próprio autor sobre sua obra:
“Não acredito na vida eterna, embora vá inventando formas de dar alguma eternidade à vida. Quando invento [em Todos os Nomes] uma conservatória onde estão todos os nomes e um cemitério onde estarão todos os mortos, no fundo é uma forma de dar eternidade àquilo que não é eterno, ou pelo menos dar-lhe permanência. Se não fosse essa história do meu irmão, talvez escrevesse um livro chamado Todos os Nomes, mas seria outro totalmente, porque a minha busca dos dados referentes a ele é que me leva, no romance, a dar numa conservatória. Parece haver uma espécie de predestinação em tudo aquilo que faço. Há coisas que acontecem e que suscitam outras idéias, portanto é tudo uma questão de estar com atenção ao modo como essas idéias se desenvolvem. Algumas delas não têm saída, mas há outras que encontram seu próprio caminho. Não escrevo livros para contar histórias, só. No fundo, provavelmente eu não seja um romancista. Sou um ensaísta, sou alguém que escreve ensaios com personagens. Creio que é assim: cada romance meu é o lugar de uma reflexão sobre determinado aspecto da vida que me preocupa. Invento histórias para exprimir preocupações, interrogações…”
Três dias para ver
Helen Keller
“Eu, que sou cega, posso dar uma sugestão àqueles que vêem:
usem seus olhos como se amanhã fossem perder a visão.”
Várias vezes pensei que seria uma benção se todo ser humano, de repente, ficasse cego e surdo por alguns dias no princípio da vida adulta. As trevas o fariam apreciar mais a visão e o silêncio lhe ensinaria as alegrias do som.
De vez em quando testo meus amigos que enxergam para descobrir o que eles vêem. Há pouco tempo perguntei a uma amiga que voltava de um longo passeio pelo bosque o que ela observara. “Nada de especial”, foi à resposta.
Como é possível, pensei, caminhar durante uma hora pelos bosques e não ver nada digno de nota? Eu, que não posso ver, apenas pelo tato encontro centenas de objetos que me interessam. Sinto a delicada simetria de uma folha. Passo as mãos pela casca lisa de uma bétula ou pelo tronco áspero de um pinheiro.
Na primavera, toco os galhos das árvores na esperança de encontrar um botão, o primeiro sinal da natureza despertando após o sono do inverno. Por vezes, quando tenho muita sorte, pouso suavemente a mão numa arvorezinha e sinto o palpitar feliz de um pássaro cantando.
Às vezes meu coração anseia por ver tudo isso. Se consigo ter tanto prazer com um simples toque, quanta beleza poderia ser revelada pela visão! E imaginei o que mais gostaria de ver se pudesse enxergar, digamos por apenas três dias.
Eu dividiria esse período em três partes. No primeiro dia gostaria de ver as pessoas cuja bondade e companhias fizeram minha vida valer a pena. Não sei o que é olhar dentro do coração de um amigo pelas “janelas da alma”, os olhos. Só consigo “ver” as linhas de um rosto por meio das pontas dos dedos. Posso perceber o riso, a tristeza e muitas outras emoções. Conheço meus amigos pelo que toco em seus rostos.
Como deve ser mais fácil e muito mais satisfatório para você, que pode ver, perceber num instante as qualidades essenciais de outra pessoa ao observar as sutilezas de sua expressão, o tremor de um músculo, a agitação das mãos. Mas será que já lhe ocorreu usar a visão para perscrutar a natureza íntima de um amigo? Será que a maioria de vocês que enxergam não se limita a ver por alto as feições externas de uma fisionomia e se dar por satisfeita?
Por exemplo, você seria capaz de descrever com precisão o rosto de cinco bons amigos? Como experiência, perguntei a alguns maridos qual a exata cor dos olhos de suas mulheres e muitos deles confessaram, encabulados, que não sabiam.
Ah, tudo que eu veria se tivesse o dom da visão por apenas três dias!
(…)
À tarde daria um longo passeio pela floresta, intoxicando meus olhos com belezas da natureza. E rezaria pela glória de um pôr-do-sol colorido. Creio que nessa noite não conseguiria dormir.
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Testamento – Manuel Bandeira
O que não tenho e desejo
É que melhor me enriquece.
Tive uns dinheiros — perdi-os…
Tive amores — esqueci-os.
Mas no maior desespero
Rezei: ganhei essa prece.
Vi terras da minha terra.
Por outras terras andei.
Mas o que ficou marcado
No meu olhar fatigado,
Foram terras que inventei.
Gosto muito de crianças:
Não tive um filho de meu.
Um filho!… Não foi de jeito…
Mas trago dentro do peito
Meu filho que não nasceu.
Criou-me, desde eu menino
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde…
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai!
Não faço versos de guerra.
Não faço porque não sei.
Mas num torpedo-suicida
Darei de bom grado a vida
Na luta em que não lutei!
(29 de janeiro de 1943)
Conhecer – Cláudia Roquette-Pinto
Conhecer,
não estender uma idéia
na mente, não como ler
– a não ser como quem, lendo, sente
o bafo das palavras rente
ao rosto,
prende a respiração.
Tocar, percorrer o encaixe,
de cima abaixo,
de trás pra frente,
sem um senão.
Como a palma da sua mão,
a disposição dos pertences num quarto,
os nós, renitentes, nos sapatos,
a voz
de quem se ama,
quando essa mesma voz derrama numa mentira.
Chão indiferente em que se pisa,
exilado da inocência.
Pão, que se come,
de abraços,
repleto de embaraços,
no resgate de uma ausência.
Água ardente do que se experimenta,
lívido, sozinho
(o quem de dentro
não perfaz caminhos:
tremula
em seu remanso
fogo manso
que o dia não anula).
Poema retirado do livro Corola (2000), da poetisa brasileira, Claudia Roquette-Pinto.