A ameaça do não-ser (Ricardo Gondim)
“No processo de envelhecer, cresço.”
Ainda não atraquei o veleiro no porto da velhice. Despeço-me, porém, da matinê da vida. O meu futuro se encurta; o meu passado se alonga. Percebo o candeeiro de prata escurecer, a aquarela dos olhos desbotar, a fotografia da memória esmaecer. Perder, despedir, distanciar, passam a ser verbos cada vez mais frequentes na minha linguagem.
Encaro o tempo com coragem. O descer da ampulheta não soterra tudo; o escorrer do rio de Heráclito não arrasta tudo; a ira de Cronos não destrói tudo. No processo de envelhecer, cresço.
Com o passar dos anos, aprendi a olhar o reverso dos espelhos; a eternizar os momentos que fogem entre dedos, a chorar sem esconder as lágrimas. Hoje, levo desaforo para casa. Deixo de espernear com os abandonos. Desisto de ser palmatória do mundo. Prefiro o silêncio à badalação. Medito com as montanhas. Acolho as penumbras. Troco a libido dos olhos por palavras.
O escuro não me assusta como dantes. O menos me atrai. Encaro as nuvens negras sem assombro. Ambiento-me em cavernas. Gosto da melancolia poética, da angústia profética, da coragem filosófica.
Esfolio a intolerância da pele. Dever e desejo se confundem em minha alma. Converso com as culpas. Meu querer não nasce da obrigação, só do prazer. Os imperativos não me fustigam. Desfruto do que faço. Ensurdeço para a cobrança de quem grita.
Convivo bem com os antônimos quando se intrometem no meu vocabulário. Ímpeto não desconhece a espera, altivez abre alas para a fragilidade, encanto se acompanha da decepção. Tese e antítese se juntam com facilidade e as sínteses se tornam comuns.
Meu sol despenca no horizonte. O crepúsculo se avizinha. Não hesito em me despedir do que fui.
Ricardo Gondim é escritor, teólogo e conferencista brasileiro.