Jogo de Cena (Coutinho, 2006)
Zapeava pela TV a cabo no sábado à noite, quando dei de cara com o filme Jogo de Cena, de Eduardo Coutinho. Planejava escrever sobre Tarantino esta semana, mas a força do filme do Coutinho me tomou completamente. E não apenas pelo filme em si, mas também (em mesma escala) pelo caráter de experimento, de inquietação do diretor em buscar, envolver, misturar e experimentar novas fórmulas, combinações e ousadias em sua obra. Para quem já chegou no patamar aonde chegou Coutinho, seria fácil aquietar-se no mesmo e fugir do risco. Mas ele não se aquieta. E por isso, na minha opinião, merece meu espaço dessa semana. Ele e seu jogo de cena.
Em Jogo de Cena, Eduardo Coutinho, o maior documentarista do cinema brasileiro, mostra uma vigorosa disposição para experimentar novas invenções estéticas, narrativas e cênicas. Inquieto, como só os grandes talentos o sabem e podem ser, ele vai além e nos apresenta também uma inversão – ou um amálgama – de gêneros. Brinca com a sublevação de seu próprio caminho, cinema e gênero. E cria um jogo cênico de dores e delícias.
O trabalho não é um documentário no sentido estreito do termo. Tampouco é ficção. É mais que ambos: é um exercício de dramaturgia e uma brincadeira inteligentíssima com os limites da ficção e da realidade, com os limites da mimética dramática e do depoimento documental.
Em 2006, Coutinho colocou um anúncio em jornais do Rio de Janeiro convidando mulheres que pudessem contar suas histórias de vida e participarem de um filme. Gravou diversos depoimentos. Depois convidou atrizes como Andréa Beltrão, Marília Pêra, Fernanda Torres e outras não tão conhecidas a verem os depoimentos, decorarem os textos e depois gravarem, elas, interpretando as mulheres reais.
O resultado, fruto da alternância dos depoimentos reais e fictícios, é um filme bonito e tocante. De uma beleza que nasce do talento grandioso das atrizes, misturado à franqueza desarmada das mulheres reais com suas histórias. Histórias quase sempre pautadas pela luta, pela tragédia, pela opressão da vida, da miséria, da ignorância e de homens de caráter ralo.
E é surpreendente ver na tela emoções alheias tomadas para si na voz e na face das interpretações. Ver como muitas vezes há no ator uma íntima disputa entre a técnica e o sentimento, onde muitas vezes ele se entrega ao clichê, porque isso, muitas vezes, é a vida real simplesmente. Também é fascinante o jogo da ocultação, da ficção dentro do documental, onde não se nota as nuances que saparam um do outro, tornado-os uma coisa só.
O ponto de equilíbrio tênue e traiçoeiro desse limiar impreciso parece estar nas lágrimas das mulheres que aparecem no filme. Entre contidas e abundantes, permanentes ou ocasionais, são as lágrimas que algumas vezes denunciam, outras vezes despistam. Mas estão sempre lá, algumas vezes trazidas dentro da bolsa, a tiracolo, feito acessório de trabalho; outras vezes, trazidas nos compartimentos da alma, autênticas, moderadas ou espalhafatosas, incorrigíveis. São elas, as lágrimas, que dão o tom máximo do óbvio e do reservado, que parece distinguir o real do ficcional, quando muitas vezes não é nada disso, porque nem tudo é o que aparenta em um jogo de cena.
Coutinho renova a si mesmo em Jogo de Cena. Mostra-se sagaz e inquieto com a obviedade e busca mais que o esperado para quem já foi tão longe dentro de seu ofício.
Ele cavucadentro da realidade para achar os tesouros do ficcional e depois compará-los e depois misturá-los, até que se tornem indistinguíveis. Presta-se a escrutinar a arte da interpretação, a desvelar mistérios, a expor o intrínseco sem perder-se de sua natureza e de seu ofício: a realidade, o documental.
O diretor constrói um filme de beleza diferente, brincalhão com os revezes do dramático e da dramaturgia. Empresta graça até ao que é triste. Se mantém fiel ao que é seu, mas sem pipocar no repetitivo e previsível. Coisa que só os grandes artistas conseguem, porque nunca param de buscar um modo diferente de fazer as coisas.